sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Aqui o tratamento psiquiátrico é humanizado

Por Laís Scortegagna

A imagem que foi feita do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, ou do Bezerra de Menezes, em Passo Fundo, em nada se parece com a ala psiquiátrica do Hospital Nossa Senhora Auxiliadora (HNSA) do município de Iraí. As coisas começaram a mudar em 2001, quando foi sancionada a Lei da Reforma Psiquiátrica. Esta lei tem por objetivo desinstitucionalizar o paciente e reinserí-lo na sociedade, ao contrário do que acontecia no antigo modelo em que alguns pacientes passavam a vida toda no hospício. “Nunca me esqueço de uma senhora esquisofrênica que conheci no São Pedro na época de faculdade. Ela chegou no hospital ainda jovem e já estava vivendo lá há 56 anos”, conta a psicóloga do HNSA, Juliane Sari Barros.

A cidade do extremo norte do Rio Grande do Sul é a primeira da 19ª Coordenadoria de Saúde a atender pacientes psiquiátricos, sendo a referência – inclusive para pacientes considerados graves - em toda a região. O atendimento é realizado pelo SUS. A equipe – que conta com um médico psiquiatra e um clínico geral, psicóloga, pedagogo, assistente social, enfermeiras e técnicos de enfermagem – recebe também apoio de voluntários.

A manicure faz as unhas das mulheres como
voluntária
Na segunda-feira, dia 13 de setembro, uma manicure veio fazer as unhas das internas. As técnicas de enfermagem Márcia Kühne da Silva e Cleura Meneghetti contam que a manicure faz isso com frequência. “Ela liga e pergunta se tem bastante mulher”, contam. As mulheres exibem orgulhosas sua unhas delicadamente decoradas com flores. Diogo, também interno, entrou na brincadeira e pediu para fazer as unhas. Mas só pintou e decorou dois dedos. Todos se divertem. Juliane ressalta a importância disso para os pacientes. “Uma característica geral aos pacientes psiquiátricos é a falta de cuidados pessoais. Então isso faz bem para elas”.

Em sete anos a ala psiquiátrica do HNSA já atendeu em torno de 2000 pacientes de mais de 90 municípios. São pacientes com vício em álcool, drogas e com transtornos mentais. “Aqui nós temos uma ala psiquiátrica, mas que tem o funcionamento de um hospital psiquiátrico”, explica o psiquiatra Paulo Barros. Mas não é impessoal como a maioria. As alas regionais têm poucos pacientes em relação aos hospitais psiquiátricos. Em torno de 30 contra 200 a 300 nos grandes hospitais. Barros explica que com o número reduzido de pacientes consegue lembrar-se de todos eles. Além disso a equipe multidiciplinar trabalha em conjunto para que os internos se sintam muito bem acolhidos.

A regionalização das internações psiquiátricas também diminui a distância e, com isto, o tempo de ausência da família. Isso torna o tratamento muito mais eficiente. Mas nem sempre existe o apoio familiar. Barros diz que muitas das recaídas são por falta deste apoio. “Muitas vezes o paciente volta pra casa e ouve: ‘Já voltou? Vai encomodar de novo?’”. Mas quando o apoio familiar existe a internação é abreviada. 21 dias para dependentes químicos e 30 a 44 dias para pacientes com outros transtornos psicológicos.

A psicóloga considera que uma rede básica bem estruturada depende do paciente estar estável e bem acolhido. Para possibilitar essa inclusão a rede conta com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), com o acompanhamento psicológico e com programas de apoio como o Amor Exigente. Jorge Strapasson, 53 anos, radialista da Rádio Marabá e ex-interno do HNSA, está bem desde 2006. Hoje participa do Amor Exigente, que funciona como uma terapia de grupo. Ele ressalta a importância de ter ter com quem conversar e da continuidade do acompanhamento. Para ele, a irmã, Judite é a heroína na sua recuperação.
Veja a entrevista com Jorge:


A equipe psiquiátrica do HNSA costuma dizer que até mesmo um relógio parado, duas vezes por dia, está certo. Seu Arlindo, 46 anos - ou Arlindinho, como é carinhosamente chamado – funciona mais ou menos assim. Um dia acha que está morto, que já não tem mais jeito. No outro avisa as enfermeiras que está vivo. Arlindinho é a alegria da ala masculina. Canta, recita poesias e é apaixonado por uma das técnicas de enfermagem. É só perguntar por ela que Arlindo começa a cantar Gildo de Freitas e a declamar Manoel Loureiro. Ele diz assim: “Olha vizinha. Meu problema assim foi a cachaça, né. Me queimou todos os neurônios”. Quem ouve Arlindinho cantar não acredita. Se não for algum neurônio é a alma que guarda a prosa e o canto.
Ouça Seu Arlindinho cantando:
Dr. Barros diz que eles normalmente procuram sintomas, mas que as histórias deles são fantásticas. Eis algumas delas:

Regina, é de Cruz Alta. Adora as borboletas e não entende por que o ser humano destrói a natureza. Ela diz que seu problema é querer ser livre. “Mas é uma liberdade assim, dentro do coração”. Tanto amor pela natureza e pelos animais escondem uma infância difícil. Regina adora leite e diz que devia ter nascido de uma vaca. “Minha mãe nunca me deu carinho, nunca me amamentou. Acho que se eu tivesse uma vaca eu mamava nela”, brinca. Gosta tanto que levou para casa o leite do padre. Ele disse que não tinha leite lá mas dona Regina, não convencida, foi até a cozinha e levou o leite que encontrou. A senhora de 51 anos é a alegria na ala feminina. A maioria das colegas tem depressão, mas ficam felizes com a presença da senhora sonhadora.


Cristiano, 24 anos, questionava se para contar sua história precisaria ser bem articulado com as palavras e se não podia falar “na linguagem da malandragem”. Mas falar não é problema para ele. Cristiano adora música e ler. Queria ser datilógrafo e até fez curso para isso. Internou-se no HNSA por uso de drogas. Ele diz que o que o levou para as drogas foi a morte da mãe, em acidente de trânsito quando ele tinha 13 anos. Passou por várias drogas até chegar no crack. Cristiano está um pouco confuso quanto ao que o fará deixar definitivamente das drogas. Talvez uma menina que o espere ou a preocupação que tem com os irmãos. Ainda não sabe, mas a fé o ajuda muito. É evangélico e acredita em espíritos bons que ajudam, mas também em alguns que querem atrapalhar. Uma de suas leituras é a Bíblia, mas também gosta de ler sobre UFOs e extraterrestres. O que ele mais queria era uma máquina de escrever para escrever todos os livros que saíssem de sua cabeça. Sobre o quê? “Sobre os mortos. Sobre os músicos importantes que já morreram”.

Sidinei diz que bebe desde os cinco anos. A mãe também era alcoólatra mas não foi por isso que ele começou a beber. Sua mãe colocava um copo de cachaça como oferenda para um santo. No outro dia o copo estava sempre vazio e ela acreditava que era o santo que bebia, quando na verdade era Sidinei.
Aos oito anos o rapaz de Taquaruçu viu a irmã, de quatro anos, ser atropelada por uma van e morrer na sua frente. Ele diz que não conseguiu segurá-la a tempo. Hoje ele tem 19 anos e está no HNSA para deixar as drogas.

Gabriel é pedreiro e carpinteiro mas quebrou as duas pernas em um acidente de carro. Um ano e meio depois voltou a andar, mas não pode subir em andaimes para realizar seu trabalho. Gabriel bebia, mas se internou porque quer ver a neta crescer. Ele tem 57 anos e criou a neta junto com a esposa. Sempre a ajudou com os deveres da escola em que nunca errava uma conta. Hoje está terminando de pagar o segundo computador. O primeiro ele vendeu por um terço do preço para comprar bebida.

Clóvis tem 24 anos e já casou-se três vezes. Do casamento atual tem cinco filhos - um dele e quatro da mulher. Foi por eles que aceitou se internar. Usava drogas desde o fim do primeiro casamento, mas as coisas pioraram com o suicídio da irmã. No dia dos pais deste ano ele recebeu um cartão de cada filho. Foi seu maior presente e melhor incentivo.

Roberto também está lá por uso de drogas. Tem 21 anos mas casou-se com 16. Ele passou fome na infância e tinha que conseguir dinheiro para comer e sustentar o vício em cigarros da mãe. Começou a cheirar cola de sapateiro aos dez anos por inocência. Ele conta que ia brincar com umas crianças e não sabia o que elas iriam fazer. Mesmo viciado, nunca roubou. Resolveu o problema trabalhando como engraxate, e diz que depois disto nunca mais passou fome.

Melhorias na parte física são bem vindas


Além das esteiras o hospital tem duas bicicletas
ergométricas
Artes e exercícios acontecem juntas em uma pequena garagem próxima ao hospital. O pedagogo, Elísio Rosa, coordena oficinas e atividades em grupo. Segundo ele as mulheres tem mais paciência para trabalhos manuais. Já os homens preferem fazer exercícios na pequena academia. Eles fazem muitos trabalhos com jornal enrolado. Alguns dos equipamentos da academia foram doações. A equipe gostaria de poder usar mais espaço para as oficinas, mas a burocracia freia a ampliação. É que uma lei diz que essas atividades não podem ocorrer junto ao hospital .
Outra melhoria que seria bem vinda pela equipe e pelos internos é no ambiente. Apesar da equipe seracolhedora o espaço físico é frio e um pouco escuro. O hospital já recebeu cinco climatizadores e um televisor de tela plana para a unidade. Eles ainda não foram instalados mas o hospital está sendo reformado.

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